Paisagem

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   Dia desses passei perto da casa onde morei toda minha infância. Não a reconheci. Cadê o portão enferrujado e meio torto? E aquela parte quebrada do muro, por que consertaram? E as flores que mamãe plantou naquele canteiro, onde estão?
   Cobriram o amarelo desbotado da minha infância de um rosa desbotado de bom gosto.
   O pai e a mãe venderam a casa logo depois da separação, mas não perguntaram para mim.
   Nunca encontrei outra casa que tivesse um buraco no chão do quintal do fundo, com o qual se deveria tomar cuidado para não cair dentro, pois caso isso acontecesse, quando se desse conta já estava em outro mundo (um subterrâneo, do qual até hoje tenho minhas dúvidas se existe ou não).
   Nunca encontrei outra casa que as folhas e flores que a árvore ao lado deixava cair no quintal viravam dinheiro. Nem dólar, nem euro valeriam tanto quanto aquele dinheiro que comprava mundos e até o que não estava a venda.
   Nunca encontrei outra casa na qual visse meu pai sentado na sala assistindo o jogo no domingo à tarde. Na qual eu me sentaria ao lado dele e pensaria se o juiz merecia mesmo tudo aquilo.
   Também nunca encontrei outra casa onde tivesse tanto medo e tantas brigas.
   Acho que saudade é isso, é sentir falta de momentos bons e não tão bons assim. A outra é um desejo de felicidade disfarçado.
   Ali, em frente à casa da minha infância eu não desejava nada. Apenas observava e tentava encontrar naquele móvel reformado, o esconderijo infantil.
   Ali, sozinha (apenas na companhia de algumas lágrimas) eu tentava descobrir o que ficou perdido. Talvez deixado em um canto da sala, enfiado no buraco do muro ou em cima do telhado.
   Não, eles nunca me perguntaram.
   Em certo momento pensei que se tivesse dinheiro compraria aquela casa novamente, mas essa ideia logo passou. Pra quê? É mesmo impossível atar as duas pontas da vida.
   Ali, naquele momento, lembrei do dia em que minha irmã ligou: “Corram! Antes que ele chegue”.
   Sozinhas, na rua, de mãos dadas...
   Corram, antes que ele chegue...
   Noite, sozinhas, frio....
   Corram, antes que ele chegue...
   Escuridão, pra onde? Sozinhas...
   Corram... Antes que ele chegue.

Obs: pintura "Paisagem de inverno" de Kandinsky