O Prazer dos Coletivos

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“A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara”. ¹

   Há um prazer acre-doce em andar de ônibus. E não é o orgulho de quem não tem outra opção, falando, não. Eu realmente vejo um prazer nisso. Dizem que são felizes aqueles que conseguem aproveitar as pequenas coisas do dia-a-dia. Bom... Feliz ou não, eu aproveito.
   Então, eu sinto um prazer nisso.
   Ao entrar em um ônibus, parece que somos tomados imediatamente por uma força que nos faz olhar pra fora. E é tão difícil olhar pra fora, não é mesmo? Nós que somos tão acostumados a olhar pra dentro que, se por ventura, olhamos pro exterior é pra mediar a relação com nosso interior.
   Parece-me que essa força não existe nos meios de transportes particulares. Privilégio dos coletivos.
   Então, eu entro no ônibus, passo meu cartão, me sento indiferentemente em um banco e... olho pra fora.
   Daí que andar de ônibus meio que parece andar pela vida sem ser percebida pelos que estão vivendo. E não é exagero, nem fruto desses impulsos literários que às vezes nos tomam. Eu realmente penso assim.
   Então, eu entro no ônibus, passo meu cartão, me sento indiferentemente em um banco, olho para fora e... vejo a vida.
   E aí?! Daí que vejo as casas, o comércio, as pessoas e inevitavelmente sempre me faço a mesma pergunta: por quê?
   Por que aquele senhor um dia pensou em abrir aquele restaurante? Ok, talvez essa resposta seja mesmo óbvia: pra ganhar dinheiro. Mas pra quê? Pra ele comprar um carro, uma casa e etc? Mas era porque ele queria comprar um carro, uma casa e etc ou porque ele tinha que comprar um carro, tinha que comprar uma casa e tinha que comprar etc?
   Por que aquela mulher está andando apressada, quase correndo, que nem viu quando alguém a cumprimentou? Por quê?
Por que aquele cara ali acordou de manha, tomou seu café, foi trabalhar e vestiu uma máscara sorridente ao entrar no trabalho? Por que ele tira a máscara sorridente quando sai da loja? Por quê?
   Por que aquele senhor do outro lado da rua anda tão indiferente às pessoas ao seu redor que nem viu quando uma velha senhora, sentada na sarjeta, lhe estendeu um pacote de amendoins pra que ele comprasse? Por quê?
   Por que aquela velha está ali? Por que eu estou aqui olhando pra ela? Ah.... é mesmo... é uma viagem pela vida.
   Não é querer dar sentido a tudo, não é isso. É só um estúpido desejo de que aquelas pessoas tenham “porquês”. É só um desejo que as pessoas saibam porque estão vivendo. Só pra seguir o curso natural da vida?
   Você nasce, daí você cresce, aí você tem que estudar, tem que arrumar um emprego, tem que ter dinheiro, tem que encontrar um amor, tem que casar, tem que ter filhos, tem que ser feliz, tem que morrer...
   Só queria que aquele cara tivesse um porque. Um porque pra levantar e ir trabalhar. Um porque pra vestir essas máscaras cotidianas.
   Um porque pra retirá-las.
   Não faça essa cara, as máscaras não são de todo ruins.
   E toda vez é assim... Toda vez eu entro no ônibus, passo meu cartão, me sento indiferentemente em um banco, olho para fora, vejo a vida e me pergunto... Por quê?
   Não importa a distância.
   Não importa se acompanhada ou só.
   E daí que passo todo o caminho me perguntando... e quando parece que vou chegar a uma resposta ou desistir de todas as perguntas... eu chego ao meu destino.
   Então, eu desço do ônibus e vou viver.

¹ BRANDÃO, Raul. Húmus. Porto: Porto Editora, 1991, p. 39.