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Eram oito da manhã e o sol já começava a arder nos braços nus. A pé, eu andava num passo apressado cruzando por alguns Chillis Beans e Vons Douche que pareciam tão perdidos quanto eu.
Cheguei ao meu trabalho atrasada... era o terceiro dia consecutivo que isso acontecia e o Rolex me chamou até sua sala.
Levei uma advertência.
Apreensiva, voltei ao meu trabalho prometendo a mim mesma não perder mais a hora.
Um Apple veio ter comigo. Não dei muita atenção, tinha muito serviço por fazer..... e também não queria conversar com ele... era do tipo que só sabia puxar papo e segredar ao Rolex os deslizes dos funcionários.
Depois de um tempo, viu que não conseguiria minha conversa e foi, um pouco contrariado, tentar a sorte com um Sony.
Soou o intervalo para o almoço e desci o mais depressa possível ao restaurante.
Escolhi uma mesa de canto e uma Empório veio me atender. Pedi um prato simples e pus-me a esperar.
Olhei pela janela e os Oakleys já invadiam a rua.
Voltei a atenção para meu prato que chegava e traguei tudo em 15 minutos.
Paguei a conta e fui andar um pouco antes de voltar ao trabalho.
Um Marlboro veio me perguntar a hora enquanto um Crocs nos entregava uns panfletos e uma Ferrero Rocher atravessava a rua....
Perdi por um momento meu olhar e pensamentos até que um som de freada veio me acordar.
Uma Wolksvagem quase atropelou um Caloi que não respeitou o semáforo!
Deixei a confusão pra trás e voltei ao trabalho.
O período da tarde passou rapidamente e só me distraí um minuto para olhar com maior atenção a Valentino que passava.
Soou o final do expediente e enquanto saía ia conversando com um D&G e uma Gucci.
Na porta, tropecei num degrau e quase caí. Olhei para a rua com vergonha, um Fiat de sobretudo passava sem notar nada ao redor. Porém, quando já me recompunha, percebi que um Adidas ria do meu quase-tombo. Pensei em gritar algo, mas lembrei do Ray Ban que sou e segui meu caminho para casa.

Domingo

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As últimas gotas do mel caíram sobre o pão. Ela passou o dedo na boca da garrafa tentando resgatar um pouco da doçura que ainda subsistia ali. Lambeu o dedo lambuzado e uma gota que havia caído na blusa, última lágrima de ouro. Comeu calmamente, como sentindo em cada movimento da mastigação a secura do pão e a suavidade do mel que, juntas, formavam uma combinação que ela julgava perfeita.
Eu, sentado a sua frente, admirava a garrafa donde o mel fora retirado. Era uma garrafa grande, o que me fazia pensar que o mel que um dia ali estivera levara muito tempo para ser consumido. Ela confirmou que sim, quatro anos. E onde a senhora comprou? Ele me deu.
Ele... ele tinha tocado naquele vidro. Tive um impulso de colocar minhas mãos naquela garrafa para sentir um pouco do que ele foi, para estar no mesmo lugar onde ele esteve... mas me contive e continuei apenas olhando.
Ele ia extinguindo-se aos poucos... as roupas doadas, a mobília trocada, a rotina renovada, as lembranças embaralhadas... as poucas coisas que tinham sobrado começavam também a se esgotar... o mel, os frascos de perfume...
Levantei e peguei uma cerveja na geladeira, as marcas dos produtos também tinham sido trocadas...
Abri a lata e enquanto sorvia aquele líquido lembrei-me do dia que perguntei a ele se gostava daquela marca pelo gosto ou pelo preço... no começo era pelo preço, mas depois a gente se acostuma..... a gente se acostuma a tudo... concordei com a cabeça, naquele tempo ainda não tinha me deparado com a ferrugem da saudade.

Presença

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Os olhos pairam, mas não enxergam o que a visão olha.
Os ouvidos pulsam, mas não escutam o que a audição ouve.
As mãos projetam, mas não edificam o que a situação ordena.
A vida passa numa fotografia que não revela
aquilo que foge
aos olhos, ouvidos e mãos
de quem folheia um álbum de fotos
qualquer.

Poema de Aniversário

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Aspiro o silêncio sepulcral da manhã e me preencho de 
vazio.
O horizonte permanece na paz
inabalável
daquilo que existe.
Caminho por entre os mármores frios
e a morte esbarra nas flores que jorram dos vasos.
Toco na pele fria da moldura que encarcera um sorriso.
Somos dois estranhos.
Esboço algumas palavras.
Sinto os olhos úmidos.
Uma lágrima nasce, mas é ríspida demais para se entregar ao chão.
Volta ao útero de onde veio.
Invejo a humildade do orvalho que se entrega ao abismo.
Penso no passado e me orgulho do fracasso que sou.
Despeço-me com promessas e pedidos.
Sigo meu caminho a pensar quando voltarei ao pó
e a manhã repousa com a complacência de quem ambiciona apenas
entardecer.

II

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Eu amo.
E amo com uma ferocidade e loucura tamanhas,
que só não saio por aí
rodopiando pelos ares
(feito balão que se esqueceu de amarrar a boca),
porque escrevo.
Esse lirismo comedido – virtude pós-moderna –
não me serve.
Eu sou um fraco.
Mas prefiro a fraqueza do amor à robustez da indiferença.
O arquiteto que me perdoe, mas minha construção é feita de tênue alvenaria.
Daquela que com o mais casto toque sai voando,
e pousa
em qualquer terreno,
afável ou grosseiro.
Eu amo.
E amo tudo quanto existe e é passível de amar.
E invento também.
Porque a realidade não me basta.
Crio venturas e desventuras,
verossímeis ou surreais,
não há disparate no meu mundo,
pois tudo é belo quanto a mulher que passa.
Eu amo!
E amo aquilo que fere, que é áspero, árduo, indócil,
porque amar é humano,
mas padecer por amor...
é celestial.

I

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Um dia aprendi com um moleque,
Mestre,
que ser inútil tem lá suas utilidades.
Passei assim. 
Então.
Portanto.
Me engrandecendo de inutilidades.
Porém,
(em certo quando)
ao meditar inutilmente,
me vi útil pra ser triste
(pra ter nó no peito e aperto na garganta).
Senti, então, minha cachoeira de inutilidade útil
cair-se
em mar de utilidade inútil
e utilmente entristeci.
Foi então que inutilizei minha tristeza
e fiz dela palavras.
Coloquei num poema torto,
desajeitado, útil, inútil, pouco importa, tanto faz...
Triste.

Oração

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   Pai nosso que estás no céu santifica este é o grande problema você tá no céu quero ver ser santo aqui na terra com tudo que é pecado só esperando a gente pecar tudo bem que seu filho foi santo terreno também mas na época dele era fácil vai ser guloso com pão e peixe ter luxúria vestindo túnica vaidade se nem espelho tem não não vai ah e hoje em dia tem as pernas também mas um diz que elas não têm pernas outro diz pra que tantas e eu já não sei mais em quem acredito seja feita a vossa vontade assim é bom um monte de gente fazendo vossa vontade e a minha quem faz o pão nosso de cada dia nos dai hoje mas aí também fica difícil por que só hoje não pode ser o pão nosso de cada dia nos dai hoje e sempre porque desse jeito que tá a gente tem que rezar todo dia e a bebida como fica a gente nasce peca cresce peca estuda peca trabalha peca se casa peca tem filhos peca morre peca e não tem o direito de tomar uma bebidinha pode até ser que você goste de vinho tem gente que gosta mas eu prefiro é cerveja mesmo  faz assim então cerveja pra mim e vinho pra você eu pago a conta pode mudar então e ficar assim o pão nosso e a bebida minha nos dai hoje e sempre mas livrai-nos do malamém.

Soneto Incerto

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Procura-se o certo, até a vã certeza 
de que é melhor o fim, mesmo que seja 
antes do facultativo começo. 
Abstrata forma, deixa tudo cheio, 
 
pé, pau, pele, placenta, pulmão, perna... 
qualquer vão vazio ou brecha, onde possa 
se infiltrar e encontrar um reservado 
lugar, o qual estaria completo 
 
com essas coisas que não satisfazem: 
angústia, ira, amor, desassossego... 
Mas mesmo que haja aqueles que dizem 
 
que de certeza estar-se preenchido 
é o que aspira o homem, vem a vertigem 
de exaurir-se e ser só ilusão e vazio.

Minha cachaça

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     Naquele dia tinha ido dormir às 4 da manhã. Não estava muito bem, então resolvi ficar acordada fazendo qualquer coisa inútil (que agora não me lembro) e pensando o que deveria mudar na minha vida. Prazer de crucificado, ficar olhando as próprias chagas e nunca deixar-se morrer.
     Pois bem, isso pouco importa. O fato relevante é que como fiquei acordada até àquela hora, desejava acordar às 11 ou depois. Mas não foi o que aconteceu. Às 8 acordei com meu irmão pulando em cima de mim e fazendo uns sons estranhos com a boca que não sei reproduzir com palavras. O que foi? Tem ensaio da orquestra hoje na igreja, vamos? ........ Vamos.
     Não gosto de igrejas, embora admire a fé por ser algo que não tenho. Mas orquestra é orquestra. Ensaio é ensaio. E isso são coisas que não se perde. Fui.
     Chegando lá a igreja estava lotada, fiquei em pé, quase do lado de fora, mas no meio da celebração já estava em um lugar mais confortável. Havia uns 270 músicos. Antes de o ensaio começar, o pastor fez suas preces. Leu o salmo, explicou, gritou, chorou e etc. Chegando ao fim de sua fala ele passou para o tema “música”. Disse coisas significantes, como por exemplo, que há músicos que ficam muito tempo sem tocar seu instrumento, simplesmente não conseguem. Deixam-no guardado, empoeirado, querem pegá-lo, mas não há ânimo. Para o pastor isso é obra do satanás, para mim, é obra de qualquer outra coisa que não sei explicar.
     De todas as outras coisas significantes que ele disse a que mais me chamou atenção foi a frase: a música tira o mal que há em você.
     É, tira sim. Óbvio que ele estava falando novamente de alguma entidade mítica causadora disso, mas a frase tem sua verdade.
     De todos os poemas que já li do Carlos Drummond de Andrade há um que nunca esquecerei e que os versos iniciais ficaram gravados em minha memória. São do poema “Explicação” do livro Alguma Poesia de 1930.
     “Meu verso é minha consolação/ Meu verso é minha cachaça/ Todo mundo tem sua cachaça”.
     Tais versos desde minha primeira leitura desse poema até hoje são a melhor explicação do que é poesia. Do que é poesia e música pra mim. “Todo mundo tem sua cachaça”, todo mundo tem algo pra se apoiar, pra se consolar, pra tirar o “mal” de si. Se não tivesse a gente já teria enlouquecido, se suicidado, gritado com a moça bonita que não te quer, matado o cara que entrega o gás e xingado Betoween por ter composto aquela música.
     Qualquer coisa serve de apoio, cada um encontra a que melhor lhe convém. Para alguns é a bebida, para outros as drogas, a vontade insaciável de consumo, o sexo, a internet, a religião, até mesmo outra pessoa e etc.
     A minha muleta, a minha cachaça, o meu oxigênio são a música e a literatura. Para aqueles que têm a alma tímida, os olhos sempre baixos e o corpo pouco interessante, qualquer coisa que se pode dizer sem falar é um grande aliado.
     Se estou triste, pego meu violão; se falhei em algo, escrevo um poema; se estou feliz, canto um samba e assim, tiro o mal de mim.
     Saí daquele ensaio feliz. Ouvi o timbre de cada instrumento, cada voz que soltava suas mágoas, cada sopro que expelia o que estava guardado, chorei, vi o amor e entusiasmo nos gestos e palavras do maestro.
     A cachaça vicia, dá prazer e se torna sua grande amiga. Não penso que apoiar-se seja algo ruim. O filósofo que me perdoe, mas não quero ser livre, viver angustiada. Quero mesmo é ser dependente, incompleta e metamorfosear-me em cachaça.