Soneto Incerto

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Procura-se o certo, até a vã certeza 
de que é melhor o fim, mesmo que seja 
antes do facultativo começo. 
Abstrata forma, deixa tudo cheio, 
 
pé, pau, pele, placenta, pulmão, perna... 
qualquer vão vazio ou brecha, onde possa 
se infiltrar e encontrar um reservado 
lugar, o qual estaria completo 
 
com essas coisas que não satisfazem: 
angústia, ira, amor, desassossego... 
Mas mesmo que haja aqueles que dizem 
 
que de certeza estar-se preenchido 
é o que aspira o homem, vem a vertigem 
de exaurir-se e ser só ilusão e vazio.

Minha cachaça

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     Naquele dia tinha ido dormir às 4 da manhã. Não estava muito bem, então resolvi ficar acordada fazendo qualquer coisa inútil (que agora não me lembro) e pensando o que deveria mudar na minha vida. Prazer de crucificado, ficar olhando as próprias chagas e nunca deixar-se morrer.
     Pois bem, isso pouco importa. O fato relevante é que como fiquei acordada até àquela hora, desejava acordar às 11 ou depois. Mas não foi o que aconteceu. Às 8 acordei com meu irmão pulando em cima de mim e fazendo uns sons estranhos com a boca que não sei reproduzir com palavras. O que foi? Tem ensaio da orquestra hoje na igreja, vamos? ........ Vamos.
     Não gosto de igrejas, embora admire a fé por ser algo que não tenho. Mas orquestra é orquestra. Ensaio é ensaio. E isso são coisas que não se perde. Fui.
     Chegando lá a igreja estava lotada, fiquei em pé, quase do lado de fora, mas no meio da celebração já estava em um lugar mais confortável. Havia uns 270 músicos. Antes de o ensaio começar, o pastor fez suas preces. Leu o salmo, explicou, gritou, chorou e etc. Chegando ao fim de sua fala ele passou para o tema “música”. Disse coisas significantes, como por exemplo, que há músicos que ficam muito tempo sem tocar seu instrumento, simplesmente não conseguem. Deixam-no guardado, empoeirado, querem pegá-lo, mas não há ânimo. Para o pastor isso é obra do satanás, para mim, é obra de qualquer outra coisa que não sei explicar.
     De todas as outras coisas significantes que ele disse a que mais me chamou atenção foi a frase: a música tira o mal que há em você.
     É, tira sim. Óbvio que ele estava falando novamente de alguma entidade mítica causadora disso, mas a frase tem sua verdade.
     De todos os poemas que já li do Carlos Drummond de Andrade há um que nunca esquecerei e que os versos iniciais ficaram gravados em minha memória. São do poema “Explicação” do livro Alguma Poesia de 1930.
     “Meu verso é minha consolação/ Meu verso é minha cachaça/ Todo mundo tem sua cachaça”.
     Tais versos desde minha primeira leitura desse poema até hoje são a melhor explicação do que é poesia. Do que é poesia e música pra mim. “Todo mundo tem sua cachaça”, todo mundo tem algo pra se apoiar, pra se consolar, pra tirar o “mal” de si. Se não tivesse a gente já teria enlouquecido, se suicidado, gritado com a moça bonita que não te quer, matado o cara que entrega o gás e xingado Betoween por ter composto aquela música.
     Qualquer coisa serve de apoio, cada um encontra a que melhor lhe convém. Para alguns é a bebida, para outros as drogas, a vontade insaciável de consumo, o sexo, a internet, a religião, até mesmo outra pessoa e etc.
     A minha muleta, a minha cachaça, o meu oxigênio são a música e a literatura. Para aqueles que têm a alma tímida, os olhos sempre baixos e o corpo pouco interessante, qualquer coisa que se pode dizer sem falar é um grande aliado.
     Se estou triste, pego meu violão; se falhei em algo, escrevo um poema; se estou feliz, canto um samba e assim, tiro o mal de mim.
     Saí daquele ensaio feliz. Ouvi o timbre de cada instrumento, cada voz que soltava suas mágoas, cada sopro que expelia o que estava guardado, chorei, vi o amor e entusiasmo nos gestos e palavras do maestro.
     A cachaça vicia, dá prazer e se torna sua grande amiga. Não penso que apoiar-se seja algo ruim. O filósofo que me perdoe, mas não quero ser livre, viver angustiada. Quero mesmo é ser dependente, incompleta e metamorfosear-me em cachaça.