5x amor

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___Por que você me perguntou aquilo?
___Aquilo o quê?
___Se a personalidade de alguém já se mostra na infância ou se vai se construindo ao longo dos anos.
___Ah, sim. Porque estou escrevendo uma nova história e não sei se digo que a personagem já apresentava suas características principais desde criança ou não.
___Entendi... E você?
___Eu o quê?
___Você acha que sua personalidade de hoje tem traços daquela da infância?

Não respondi. E, para mim, aí se encontrava a resposta. Disseram-me uma vez que eu era uma criança que falava pouco. Não me lembro das motivações infantis, mas atualmente só digo algo quando julgo necessário. Nem toda palavra vale a pena e se algo já foi dito, não há porque repetir.
Lembro-me, porém, de perguntas que gostaria de ter feito, mas faltava-me saber como. Não é tão fácil como dizem, diz-se a sentença e coloca-se um ponto de interrogação no fim? Isso é para aulas de gramática, a prática tem variantes emotivas. Calei, então, a voz daquelas perguntas e desenvolvi uma outra voz, silenciosa, individual, na qual eu poderia dizer e imaginar tudo, covardemente escondendo-me por trás de personagens e narradores. A Literatura faz dos fracos, fortes. E nunca fui tão valente como agora, ao dizer que ela salvou minha vida. Literalmente.
Pensei o que mais trazia comigo que era eco de minha infância. Certo dia uma amiga disse-me que eu era muito compreensiva, que nem tudo podia ser justificado. Bom, foi preciso compreender. Embora a Literatura sustentou-me, não vivíamos em um mundo separado, só eu e ela. As perguntas continuaram ali e permaneceram por muitos anos, apenas um ano após a morte de meu pai elas se foram.
Foi numa noite em que sonhei com ele. No sonho eu não era covarde e disse o que ficou guardado durante 18 anos. Ele não respondeu, apenas disse “esquece isso” e me abraçou. Acordei com a sensação forte de seu abraço no meu corpo e sentia uma paz tão grande que me fez esquecer.
O que restou de angústia foi retirada com compreensão, entendendo que cada um tem sentimentos e motivações tão únicos e íntimos que jamais poderão ir a julgamento ou receber uma sentença de alguém que não lhe conheça por completo. E ninguém é capaz de lhe conhecer por completo.
De agora em diante, tudo que recordo de mim, tem a figura de minha mãe ao lado. Toda a coragem que me falta, ela a tem, tudo que em mim é sussurro, é um brado em sua voz, enquanto escondo-me, ela nunca teve medo de se mostrar.
Ninguém jamais vai saber o que Dona Nadir sofreu para fazer de seus 5 filhos o que eles são hoje e embora me cheguem notícias das necessidades que ela passou, das humilhações que ela aguentou, ninguém, jamais, vai saber. Falarei, então, do que sei.
Sei que ela nunca parou. Trabalhou em tudo quanto pôde para conseguir o melhor, não para si, mas para a casa e os filhos. Tinha apenas um vestido, mas se lhe sobrava dinheiro, acrescentava mais uma peça ao vestuário das crianças.
Sei que ela já teve uma loja e que esta época foi a mesma em que um de meus irmãos estudava em outra cidade. Ficava aflita com as vendas até conseguir o dinheiro necessário para mandar para o “menino”, quando conseguia, paz. Não importava se lhe faltasse algo, “o dinheiro do menino é sagrado, e tá guardado”.
Sei que um dia enquanto almoçávamos na casa de meu irmão eu disse “a mãe sempre gostou destas partes ruins do frango, pescoço, pé, bico...” e ele respondeu “gostou não, ela aprendeu a comer para deixar a melhor parte pra gente”.
Sei que quando volto para casa ela está lá, esperando no portão, às vezes encolhida de frio, às vezes com um guarda-chuva nas mãos, mas ela está lá, esperando-me no portão.
Sei que ela não me perguntou se sou hétero, se sou homo, mas já me perguntou, sorrindo, se eu tinha “arrumado um namoradinho” e ao receber uma resposta negativamente mal-humorada perguntou, ainda sorrindo, “e uma namoradinha?”. E toda vez que homossexualidade foi assunto e eu a ouvi dizendo “são nossos filhos, a gente tem que aceitar, se fosse o meu, eu aceitaria”, na verdade, o que ouvi intimamente foi “filha, não me importa como ou o que você seja, eu te amo”.
Sei que mesmo que digamos “descanse, mãe, estamos bem”, ela não descansa, e se culpa por não ter tido oportunidades de dar ainda mais para seus filhos.

Se eu acho que minha personalidade de hoje tem traços daquela da infância?
Bom, eu ainda falo pouco e foi mais fácil escrever do que dizer tudo o que aqui vai. Porém, de todos os traços, o mais forte e profundo, sempre será o de minha mãe, este amor tão grande que foi capaz de tirar-lhe a vida e dividi-la em outras cinco, as quais tudo a ela deve e tudo a ela agradece.

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