Absolvição da Poesia

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"Meia-noite em Paris" de Woody Allen

O homem navegou sobre as águas
e não provou
o sal de suas ondulações.
O homem andou pelos campos
e não sentiu
a paz que brotava do chão.
O homem chegou à cidade
e não notou
as almas que suportavam corpos.

Um dia o homem parou
para ver a poesia
transcrita
nas páginas numeradas.

“Que letras tortas são estas que falam e não entendo?”

Ouça, homem, é a palavra que não vês?


Um bicho intelectualíssimo

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Não te enganes, não há trabalho aflitivo como o de ser poeta.

Este ato de alinhar catástrofes,
lapidar a linguagem e a vida,
edificá-las no alicerce das emoções?
Não.
Isso se tira nas letras.
Estuda, pesa, cava, guarda, testa...

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo?

Martírio, até agora, não há.
Pois bem, aqui o tens: a pena do poeta é a inconstância.

Este agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto,
que bem antes de Camões se sentia e o faz feito máscara grega.

Uma simples resposta que se demora,
de uma pergunta sem lá muita importância,
fá-lo preferir a morte ao tormento da espera.

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões?

Mas a morte não vem.
Morrer assim? No tempo e na carne?
Não.
Suicida-se parcialmente em copos e cigarros e versos.
Até que a resposta venha.
E põe-lhe o sorriso no rosto.
Até que outra pergunta seja feita.

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões e de covardia?

Ao encontrar um destes espécimes, indaguei:
“Se há tanto mal nisso, por que não trocar o ofício?”
Para o meu espanto, riu-se:
“Que nada! Desce mais um amor enquanto compro mais cigarros”.

É que nunca me disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões, de covardia e da ruína de si mesmo.