Balada cardíaca

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Precisamente às 19:25 seu coração parou.
Não houve pressentimentos, uma palavra final, um fechar de olhos lentamente, um gesto heroico.
Sem close, sem trilha sonora.
Nada.
Seu coração simplesmente parou às 19:25.
Era agosto, 21 de agosto, e isso não significa nada caso esteja pensando em um sentido para essas palavras. Nada além de que no dia 21 de agosto às 19:25 seu coração parou.
A matéria pulsante que se escondia em seu peito decidiu que não faria mais as atividades físicas e muito menos as sentimentais, que não eram de sua obrigação.
Ficou inerte, imóvel. Tinha resistido a 6 finais de Copa, encarado a morte do pai, passado pelos problemas juvenis, mas não suportou o dia 21 de agosto.
Chamaram o médico, o desfribilador, o espírita, o católico, o umbandista, o budista, o judeu, o islamita, o hinduísta, o ateu, a família, os amigos, e até mesmo um antigo amor, do qual não se falará o nome, pois antigos amores devem permanecer antigos.
Ninguém, nenhuma reza, nenhuma corrente elétrica, nenhuma lei, regra ou mentira conseguiram que seu coração badalasse às 19:26.
Por fim, depois de tantas malogradas tentativas, acataram sua decisão de não ser e voltaram às suas existências cardíacas.
A vida passou pelo tempo. O médico se aposentou, o desfribilador envelheceu, o espírita, o católico, o umbandista, o budista, o judeu, o islamita, o hinduísta e o ateu entraram em guerra, a família se extinguiu, os amigos desapareceram e o antigo amor permaneceu.
Apenas ele não fez história, apenas ele não existiu, apenas ele conservou-se, preso, atado, mudo, estático, precisamente às 19:25 do dia 21 de agosto, quando seu coração parou.

Ser feliz em Pirangi*

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Esta semana esmoreci. Trabalho, faculdade, relacionamento, dinheiro. Tudo confuso. Tudo em crise. Adoeci. Chorei. Voltei pra Pirangi.
Revejo a avenida, o coqueiro torto, o comércio, as casas... minha mãe. Ao vê-la, minha febre passa, minha voz volta e minha cabeça para de doer. Tão pequena, tão magra. Culpo-me por tê-la deixado. Culpo-me por não a resgatar.
Depois de choros abraços que saudade como você tá eu tô bem não se preocupa por que não me avisou eu cuido de você, já estamos em volta da mesa. Qualquer conversa e decisão familiar, é sempre em volta da mesa. Pão café mussarela manteiga requeijão. O que eu tinha mesmo?
De hora em hora mais uma xícara é posta. Irmãos, sobrinhos, cunhados, vizinhos...  Quando todos se vão, restamos minha mãe e eu. Duas vidas vão sendo projetas e criticadas. Isso tá bom isso não é certo faz assim não se preocupa com isso e se...
À noite vou ao médico. Na sala de espera conheço a maioria das pessoas. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém. Já no consultório, conheço o médico também. É o pediatra. Cuidou de mim, dos meus irmãos e dos meus sobrinhos. Anos depois, ele continua cuidando de mim, dos meus irmãos, dos meus sobrinhos e até da minha mãe. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém.
Pela manhã vou fazer o exame prescrito. No caminho, conheço a moça do salão, o cara da oficina, o pessoal do posto, as mulheres do calçadão. No laboratório, conheço o dono, a secretária, o cara que colhe meu sangue e até os cachorros que ficam por ali. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém.
Amanhã irei à manicure e em poucos minutos serei atualizada de todos os últimos acontecimentos da região. Quem morreu, quem nasceu, quem casou, quem traiu, quem foi, quem voltou.
Em casa novamente, 23 anos do mesmo discurso: Vem tomar café! Vem almoçar! Calça um chinelo! Por isso que você fica doente! Não se cuida! Não come direito! Você precisa se alimentar! Te falta vitamina! Te falta juízo!
Em Pirangi é assim, seja em casa, na rua, no trabalho, tem sempre alguém olhando por você, alguém que te conhece. Você pragueja por não ter muitas opções de lazer, mas sabe que na lanchonete, na pizzaria ou na praça vai encontrar a maioria dos amigos, dos conhecidos, o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão.
Em Pirangi, o bem-querer tem sabor de café. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém aparece lá em casa pra gente tomar um cafezinho apareço sim té mais inté. É claro que não aparece. É claro que quem faz e quem recebe o convite sabem disso. Segundo o dicionário pirangiense chamar alguém pra tomar um café é dizer: aparece lá em casa se precisar de algo, se tiver com algum problema, eu te ajudo. Mas por que, então, não falar logo de cara? É que café é bom. Problema não.
Em Pirangi, as referências não são dadas por prédios comerciais, mas por residências. É lá perto dos Pirondi, do lado dos Bossolani, lá pro lado da casa do Dr. Edson, na frente do Dr. Rogério.
Em Pirangi, o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão, conhecem minha família. Meu pai, minha mãe, meus irmãos e sobrinhos. Em Araraquara, quê importa minha genealogia? Ninguém pergunta sobre o emprego do meu irmão, ninguém sabe quem foi meu pai, ninguém vai dizer que me conhece desde pequenininha ou vai mandar lembranças aos meus irmãos ou vai exclamar como seus sobrinhos cresceram!
Eu amo Ararquara. A cidade me deu formação, emprego, conhecimento, amigos, casa, liberdade, amadurecimento. Mas Pirangi tem a lanchonete a pizzaria a praça o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão, as cadeiras que conversam à noite, o pão café mussarela manteiga requeijão, o depois eu te pago, o pois sim, o pois não.
Pirangi irá resistir à modernização. No ano de 2100 quando os carros voarem e as pessoas se robotizarem, Pirangi continuará com suas charretes e cavalos pela rua, com as cadeiras em frente às casas, com o passa lá pra tomar um cafezinho.
Voltarei à Araraquara. Mas quando me cansar, venho pra Pirangi. Quando me aposentar, venho pra Pirangi. Pra ser ponto de referência, pra um cafezinho, pra falar que conheço você desde pequenininha, pra que conheçam meus filhos, meus netos, pra ser feliz em Pirangi.

*O título foi retirado da canção "Pirangi", de João Pacífico.



Poema em branco e preto

1

Quando a porta abriu e a claridade entrou,
a poesia, companheira do homem,
esgueirou-se para o escuro que inda restou.

Esquecida, ela via nossas acrobacias solares,
os eclipses celestes e os tons que antecedem
o entardecer de todas as amizades.

Quando a porta fechou e anoiteceu,
a poesia, esperança do homem,
alargou-se e preencheu-se do breu.

Lembrada, esqueceu a traição de outrora,
tomou minhas mãos, murchas de desdém,
e guiou-me pela noite cá dentro e lá fora.

Outros crepúsculos virão até que reste
a poesia, compreensiva do homem,
e me leve aonde não há porta que abra ou feche.