A língua como espelho: o machismo refletido no uso do português

0

Esta semana mais um caso de estupro veio à tona. Uma menina de 16 anos foi violentada por 33 homens, os quais ainda divulgaram, na internet, vídeo e imagens da ação. Tal acontecimento foi noticiado por diversos veículos, provocou o surgimento de inúmeros textos, falas e manifestações nas redes sociais, além de campanhas contra a cultura do estupro. Mulheres tomaram voz e se posicionaram contra as constantes violências que vêm sofrendo, contra o fato de viverem em um país no qual sempre são subjugadas e inferiorizadas. Dentre várias notícias que os maiores jornais brasileiros divulgaram, duas especificamente me chamaram a atenção. Elas foram publicadas na Folha de São Paulo e, pela forma como foram escritas, só serviram para reafirmar a estreita relação entre a cultura machista na qual vivemos e a língua a qual falamos.
O português é a língua mais falada no Brasil, mas nem sempre foi assim. Até meados do século XVIII a língua mais utilizada era a “língua geral”, de origem tupi, que permitia a comunicação entre índios de diversas tribos, europeus e africanos. Em 1694 o Padre Antonio Vieira escreveu que “as famílias dos portugueses em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, [...] e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola”.
A partir de 1654, com a saída dos holandeses do território brasileiro, Portugal se empenha ainda mais no processo de colonização e, consequentemente, toma diversas medidas que levam ao declínio da língua geral e ao favorecimento do português no Brasil. Uma dessas medidas foi a “Lei do Diretório”, de 3 de maio de 1757, que proibia o uso da língua geral na colônia, até mesmo por parte dos nativos. Dessa forma, o português, que já era a língua oficial do Estado e também a de mais prestígio (usado pelo branco europeu), passa a ser a mais falada em território nacional.
Tal percurso histórico se faz importante para entendermos a língua como um elemento ideológico, um produto social e instrumento de poder do qual os dominantes se utilizam para inferiorizar os dominados. Se não fosse assim, a imposição de um idioma não faria parte das políticas de colonização da coroa portuguesa juntamente com a imposição da religião católica e das formas de organização social e produção cultural europeias.
Como analisa o linguista José Luiz Fiorin no livro Linguagem e Ideologia: “As visões de mundo não se desvinculam da linguagem, porque a ideologia vista como algo imanente à realidade é indissociável da linguagem. As ideias e, por conseguinte, os discursos são expressão da vida real. A realidade exprime-se pelos discursos”. É com base nisso que devemos analisar as manchetes produzidas pelo jornal Folha de São Paulo.




Expressões como “[...] garota que afirma ter sido estuprada” e “[...] suposto estupro coletivo” só deixam claro o descrédito dado à fala de uma mulher, mesmo quando envolve um caso tão sério. Esses títulos, que foram modificados após críticas por parte dos internautas, são um reflexo, no uso da língua portuguesa, do machismo em nossa sociedade e da relativização dos abusos e violências que as mulheres sofrem cotidianamente.
Ademais, outro caso recente também pode ser citado como um exemplo do discurso machista na nossa língua: a polêmica que envolveu o uso do termo “presidenta” para designar a recém-eleita Dilma Rousseff. Segundo pesquisa feita pela equipe do Dicionário Aurélio, tal substantivo existe na língua portuguesa desde 1872 (em obra do escritor Antônio Feliciano de Castilho) e, em dicionários, pelo menos desde 1925 como, por exemplo, na 2ª edição do Caldas Aulete: “Presidenta (pre-zi-den-ta), s.f. (fam.) mulher que preside; esposa de um presidente. // F. fem. de presidente”.
Ao produzirmos um determinado discurso, criamos uma imagem de nós mesmos ao mesmo tempo em que expomos um ponto de vista, sendo assim, a dúvida quanto à veracidade do vocábulo “presidenta” é estritamente política e ideológica. Ao negar o uso da expressão, nega-se também o direito a uma mulher de liderar o país, coloca-se em cheque sua capacidade de governar com base no preconceito de gênero.
A língua é o reflexo da sociedade da qual faz parte, apenas numa cultura na qual existe o racismo e uma herança escravagista pode haver expressões como “dia de branco”, “eu não sou tuas negas” ou “serviço de preto”. Apenas numa cultura na qual existem casos de homofobia, palavras como “gay” tem caráter pejorativo e, por fim, apenas numa cultura na qual existe o machismo, alguém pode escrever algo como “suposto estupro”.
Modificar o uso da língua para que ela não seja objeto de dominação, racismo, homofobia e machismo é tão importante quanto modificar os valores culturais nos quais estamos inseridos. O caso recente de estupro ganhou destaque pela quantidade de homens envolvidos, porém, não é o único. Foram 47,6 mil casos em 2014, 1 A CADA 11 MINUTOS, e a violência não para, haja vista o também recente acontecimento no Piauí. Diariamente mulheres são violentadas, humilhadas, inferiorizadas e subjugadas. Sendo assim, aquelas notícias publicadas pela Folha de São Paulo deixam claro como o feminismo é mais do que necessário em nossa cultura, ele é algo vital para todas nós.

Referências

A linguagem politicamente correta e Linguagem e Ideologia – José Luiz Fiorin.

A língua portuguesa no Brasil – Eduardo Guimarães. Disponível em: < http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v57n2/a15v57n2.pdf>.

História da Língua Portuguesa – Serafim da Silva Neto. 3ª ed., MEC/Presença, Rio de Janeiro, 1979.

Origens do português brasileiro – Anthony Naro e Maria Marta Scherre.

"Presidenta" existe na língua portuguesa desde 1872. Disponível em: < http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/presidenta-existe-na-lingua-portuguesa-desde-1872/n1597210547562.html>.

0 opiniões:

Postar um comentário