Eu queria que você tivesse esperado só um pouquinho

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A persistência da memória, 1931, Salvador Dalí

Eu queria que você tivesse esperado.
Só um pouquinho.
Nem precisava ser muito não.
Menos que nove meses, mais que oito.
A gente ia acabar se colidindo era inevitável.
Eu queria que você tivesse notado minha roupa quando ela era nova.
E dissesse poxa adorei e eu dissesse nossa obrigada e então a gente se beijaria. Porque é por isso que a gente elogia a roupa de alguém não é.
Eu queria ter falado aquele dia que você disse quê e eu disse nada.
E ter dito que era tudo sim e então a gente transaria. Porque é por isso que a gente fala assim baixinho quase sem falar não é.
Eu queria ter olhado bem nos seus olhos no dia da chuva.
E olha você tá linda debaixo de tanta água e a gente daria as mãos. Porque é por isso que a gente olha bem nos olhos de alguém não é.
E então e de novo e mais uma vez... inevitável.
Eu queria que você tivesse esperado só um pouquinho.
Você não ia nem notar o tempo tictaquear. E quando o tempo despertasse, você ia ver que teria valido tanto ponteiro girar.
Mas agora é tarde não é. O tempo da espera já passou. O tempo de depois da espera também. E você no meio de tanta engrenagem... foi passando.
E eu parada aqui. Olhando o tempo que gira tictaqueando. Pensando que eu queria que você tivesse esperado só um pouquinho nem precisava ser muito não.


Autobiografia rejeitada

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Difícil se contar. A tentativa não vale nem um conto, é certo, e por isso mesmo me conto e me reconto, buscar por nadas me distrai. Chego, então, a um resultado não exato de mim. Mais e menos que um. Inteira fracionada. Se me multiplico, o resultado sou eu? Foi essa a operação que me fez ver a vida com olhos que não eram, mas eram, meus?
Contar-me, então, é contar-nos. Mas não há dedos. Nem mãos. E penso que não são pés esses que ora vejo. São asas que me levaram de um lugar a outro a outro a outro e a outros que ainda me levarei.
Um corpo em repouso tende a permanecer em repouso, e um corpo em movimento tende a permanecer em movimento, assim como corpos e palavras em conflito tendem a permanecer em conflito. Mas isso são tendências. Não se deve confiar nelas, ainda que se possa amá-las.
Amemos os conflitos! Como aquele do moço e seu pai na Lavoura Arcaica; e aquele do escritor e Ela, num Futuro para o qual não Voltarei; e também do Sr. Ninguém que certamente é mais que eu; e todos os outros que existem ou não ou que devem existir e talvez nunca irão.
Toda história contada é ficcional. Ainda que seja verdadeira. Sapo não pula por boniteza, mas, porém, por precisão.
Difícil se contar. A tentativa não vale nem um conto, é certo, e por isso mesmo me conto e me reconto, buscar por nadas me distrai. Chego, então, a um resultado exato de mim. Dividida em muitos, multiplicada em poucos, igual a nada, e fim.


Balada cardíaca

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Precisamente às 19:25 seu coração parou.
Não houve pressentimentos, uma palavra final, um fechar de olhos lentamente, um gesto heroico.
Sem close, sem trilha sonora.
Nada.
Seu coração simplesmente parou às 19:25.
Era agosto, 21 de agosto, e isso não significa nada caso esteja pensando em um sentido para essas palavras. Nada além de que no dia 21 de agosto às 19:25 seu coração parou.
A matéria pulsante que se escondia em seu peito decidiu que não faria mais as atividades físicas e muito menos as sentimentais, que não eram de sua obrigação.
Ficou inerte, imóvel. Tinha resistido a 6 finais de Copa, encarado a morte do pai, passado pelos problemas juvenis, mas não suportou o dia 21 de agosto.
Chamaram o médico, o desfribilador, o espírita, o católico, o umbandista, o budista, o judeu, o islamita, o hinduísta, o ateu, a família, os amigos, e até mesmo um antigo amor, do qual não se falará o nome, pois antigos amores devem permanecer antigos.
Ninguém, nenhuma reza, nenhuma corrente elétrica, nenhuma lei, regra ou mentira conseguiram que seu coração badalasse às 19:26.
Por fim, depois de tantas malogradas tentativas, acataram sua decisão de não ser e voltaram às suas existências cardíacas.
A vida passou pelo tempo. O médico se aposentou, o desfribilador envelheceu, o espírita, o católico, o umbandista, o budista, o judeu, o islamita, o hinduísta e o ateu entraram em guerra, a família se extinguiu, os amigos desapareceram e o antigo amor permaneceu.
Apenas ele não fez história, apenas ele não existiu, apenas ele conservou-se, preso, atado, mudo, estático, precisamente às 19:25 do dia 21 de agosto, quando seu coração parou.

Ser feliz em Pirangi*

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Esta semana esmoreci. Trabalho, faculdade, relacionamento, dinheiro. Tudo confuso. Tudo em crise. Adoeci. Chorei. Voltei pra Pirangi.
Revejo a avenida, o coqueiro torto, o comércio, as casas... minha mãe. Ao vê-la, minha febre passa, minha voz volta e minha cabeça para de doer. Tão pequena, tão magra. Culpo-me por tê-la deixado. Culpo-me por não a resgatar.
Depois de choros abraços que saudade como você tá eu tô bem não se preocupa por que não me avisou eu cuido de você, já estamos em volta da mesa. Qualquer conversa e decisão familiar, é sempre em volta da mesa. Pão café mussarela manteiga requeijão. O que eu tinha mesmo?
De hora em hora mais uma xícara é posta. Irmãos, sobrinhos, cunhados, vizinhos...  Quando todos se vão, restamos minha mãe e eu. Duas vidas vão sendo projetas e criticadas. Isso tá bom isso não é certo faz assim não se preocupa com isso e se...
À noite vou ao médico. Na sala de espera conheço a maioria das pessoas. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém. Já no consultório, conheço o médico também. É o pediatra. Cuidou de mim, dos meus irmãos e dos meus sobrinhos. Anos depois, ele continua cuidando de mim, dos meus irmãos, dos meus sobrinhos e até da minha mãe. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém.
Pela manhã vou fazer o exame prescrito. No caminho, conheço a moça do salão, o cara da oficina, o pessoal do posto, as mulheres do calçadão. No laboratório, conheço o dono, a secretária, o cara que colhe meu sangue e até os cachorros que ficam por ali. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém.
Amanhã irei à manicure e em poucos minutos serei atualizada de todos os últimos acontecimentos da região. Quem morreu, quem nasceu, quem casou, quem traiu, quem foi, quem voltou.
Em casa novamente, 23 anos do mesmo discurso: Vem tomar café! Vem almoçar! Calça um chinelo! Por isso que você fica doente! Não se cuida! Não come direito! Você precisa se alimentar! Te falta vitamina! Te falta juízo!
Em Pirangi é assim, seja em casa, na rua, no trabalho, tem sempre alguém olhando por você, alguém que te conhece. Você pragueja por não ter muitas opções de lazer, mas sabe que na lanchonete, na pizzaria ou na praça vai encontrar a maioria dos amigos, dos conhecidos, o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão.
Em Pirangi, o bem-querer tem sabor de café. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém aparece lá em casa pra gente tomar um cafezinho apareço sim té mais inté. É claro que não aparece. É claro que quem faz e quem recebe o convite sabem disso. Segundo o dicionário pirangiense chamar alguém pra tomar um café é dizer: aparece lá em casa se precisar de algo, se tiver com algum problema, eu te ajudo. Mas por que, então, não falar logo de cara? É que café é bom. Problema não.
Em Pirangi, as referências não são dadas por prédios comerciais, mas por residências. É lá perto dos Pirondi, do lado dos Bossolani, lá pro lado da casa do Dr. Edson, na frente do Dr. Rogério.
Em Pirangi, o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão, conhecem minha família. Meu pai, minha mãe, meus irmãos e sobrinhos. Em Araraquara, quê importa minha genealogia? Ninguém pergunta sobre o emprego do meu irmão, ninguém sabe quem foi meu pai, ninguém vai dizer que me conhece desde pequenininha ou vai mandar lembranças aos meus irmãos ou vai exclamar como seus sobrinhos cresceram!
Eu amo Ararquara. A cidade me deu formação, emprego, conhecimento, amigos, casa, liberdade, amadurecimento. Mas Pirangi tem a lanchonete a pizzaria a praça o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão, as cadeiras que conversam à noite, o pão café mussarela manteiga requeijão, o depois eu te pago, o pois sim, o pois não.
Pirangi irá resistir à modernização. No ano de 2100 quando os carros voarem e as pessoas se robotizarem, Pirangi continuará com suas charretes e cavalos pela rua, com as cadeiras em frente às casas, com o passa lá pra tomar um cafezinho.
Voltarei à Araraquara. Mas quando me cansar, venho pra Pirangi. Quando me aposentar, venho pra Pirangi. Pra ser ponto de referência, pra um cafezinho, pra falar que conheço você desde pequenininha, pra que conheçam meus filhos, meus netos, pra ser feliz em Pirangi.

*O título foi retirado da canção "Pirangi", de João Pacífico.



Poema em branco e preto

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Quando a porta abriu e a claridade entrou,
a poesia, companheira do homem,
esgueirou-se para o escuro que inda restou.

Esquecida, ela via nossas acrobacias solares,
os eclipses celestes e os tons que antecedem
o entardecer de todas as amizades.

Quando a porta fechou e anoiteceu,
a poesia, esperança do homem,
alargou-se e preencheu-se do breu.

Lembrada, esqueceu a traição de outrora,
tomou minhas mãos, murchas de desdém,
e guiou-me pela noite cá dentro e lá fora.

Outros crepúsculos virão até que reste
a poesia, compreensiva do homem,
e me leve aonde não há porta que abra ou feche.


Absolvição da Poesia

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"Meia-noite em Paris" de Woody Allen

O homem navegou sobre as águas
e não provou
o sal de suas ondulações.
O homem andou pelos campos
e não sentiu
a paz que brotava do chão.
O homem chegou à cidade
e não notou
as almas que suportavam corpos.

Um dia o homem parou
para ver a poesia
transcrita
nas páginas numeradas.

“Que letras tortas são estas que falam e não entendo?”

Ouça, homem, é a palavra que não vês?


Um bicho intelectualíssimo

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Não te enganes, não há trabalho aflitivo como o de ser poeta.

Este ato de alinhar catástrofes,
lapidar a linguagem e a vida,
edificá-las no alicerce das emoções?
Não.
Isso se tira nas letras.
Estuda, pesa, cava, guarda, testa...

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo?

Martírio, até agora, não há.
Pois bem, aqui o tens: a pena do poeta é a inconstância.

Este agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto,
que bem antes de Camões se sentia e o faz feito máscara grega.

Uma simples resposta que se demora,
de uma pergunta sem lá muita importância,
fá-lo preferir a morte ao tormento da espera.

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões?

Mas a morte não vem.
Morrer assim? No tempo e na carne?
Não.
Suicida-se parcialmente em copos e cigarros e versos.
Até que a resposta venha.
E põe-lhe o sorriso no rosto.
Até que outra pergunta seja feita.

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões e de covardia?

Ao encontrar um destes espécimes, indaguei:
“Se há tanto mal nisso, por que não trocar o ofício?”
Para o meu espanto, riu-se:
“Que nada! Desce mais um amor enquanto compro mais cigarros”.

É que nunca me disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões, de covardia e da ruína de si mesmo.