Veredito

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Na sala, a espera era longa. Uma mesa no centro guardava algumas revistas.... anúncios, atrizes, novelas.... nada que maquilasse o tempo. Um vaso de flores artificiais também repousava ali. As paredes aparentavam idade avançada e uma TV, sem som, reproduzia algumas imagens.
O ambiente estava sufocado de pessoas. Tinham uma aparência cansada e pensativa, as faces desfloridas e os ombros curvados.
Um homem batia os pés no chão acompanhando o compasso de uma música inexistente, uma criança chorava, alguém fazia cliks com uma caneta, um ou outro bocejava, o ventilador dava uns estalidos e a porta do banheiro batia por conta do vento. Tudo isso formava uma orquestra infernal e foi com alívio que ele ouviu a secretária chamar seu nome.
Entrou na sala onde a revelação vestida de branco o esperava. Os quadros de paisagens que adornavam as paredes e o jardim de inverno que havia ao fundo transmitiam uma fria paz.
O médico falava-lhe sobre uma doença incurável frente a qual a medicina podia apenas manipular o tempo, acrescentando-lhe mais alguns meses ao calendário. O doutor apresentava uma expressão triste e séria que tinha a convicção que a regularidade do uso lhe dera.
Após ouvir toda a explicação sobre o que fizera de seu corpo um alojamento e que retribuía a hospitalidade com a morte, se encaminhou para a porta e antes de sair ouviu o médico aconselhá-lo a aproveitar o tempo que ainda lhe restava visitando a família, por exemplo.
Saiu à rua, viu uma lanchonete que ficava em frente ao consultório e caminhou para lá. Havia poucas pessoas ali, o sol ardia e o calor fazia suar, mas mesmo assim pediu um café. Enquanto olhava os carros que passavam e o mormaço que saia do asfalto, sorveu o primeiro gole pensando como aproveitaria seu tempo se não tinha uma família para visitar.

Apetite

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Já não suporto o fardo da rotina,
a falsa paz do mundo às avessas,
assistir sempre a mesma comédia
e só amar as belezas efêmeras.

Já não suporto o sabor das palavras,
os olhos cansados da mesma vista,
fixar num mesmo chão minhas pegadas
e não ouvir a voz daquilo que atrofia.

Desejo a incoerência do existir
sem tempo, a paz de poder estar vazio
e a liberdade de não ter pra onde ir.

Desejo, afinal, um doce alívio
e se algo ainda possa me afligir,
que a vida viva seja meu cilício.

Soneto a ser encaminhado ao departamento competente

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Man Writing - Oliver Ray

     A ideia já se foi há muito tempo.
     O que há agora são frases perplexas
     e vãs, discutindo e teorizando
     sobre a incapacidade do poeta.

     Olham-no de sujeito a predicado,
     apedrejam-no com pontos finais,
     e tudo com o direto objetivo
     de crucificá-lo cada vez mais.

     E o poeta que chegou a pensar
     numa obra de sutil significado,
     vê-se, subitamente, encurralado

     por essas insensatas em negrito.
     E então, depois de muito matutar
     compõe um soneto para reclamar.

É preciso saber viver

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Naquele tempo a vida era áspera e atribulada, mesmo assim, vez ou outra, ela punha-se a dançar inconsequentemente pelas festas ou pela casa.
Colocava o velho rádio em cima do fogão e ficava à procura de uma estação que estivesse tocando músicas do rei. Quando não encontrava, calçava seu chinelo amarelado e ia até a esquina usar o telefone público pra pedir: “toca Roberto!”.
Voltava e a cozinha transformava-se em seu salão. Os pés faziam um vai e vem confuso e o quadril ensaiava um rebolado, enquanto os braços erguidos acompanhavam o movimento da cabeça que guardava um sorriso de recordações e a paz do esquecimento nos olhos fechados.
Nas festas, depois de fazer o que dela se esperava, pegava um copo de bebida qualquer, bebia-o sem saber o porquê e ia para o centro da roda.
O mesmo vai e vem confuso dos pés, o mesmo rebolado mal acabado no quadril, os braços erguidos, o movimento da cabeça, mas um sorriso que se voltava para o presente e os olhos abertos para a realidade daquele momento.
Hoje a vida é amena e tolerável, as coisas não são boas nem ruins. Ela não ouve mais rádio, não dança mais e passa ilesa a qualquer música do rei.
Naquele tempo, viver era a única opção.

Domingo

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As últimas gotas do mel caíram sobre o pão. Ela passou o dedo na boca da garrafa tentando resgatar um pouco da doçura que ainda subsistia ali. Lambeu o dedo lambuzado e uma gota que havia caído na blusa, última lágrima de ouro. Comeu calmamente, como sentindo em cada movimento da mastigação a secura do pão e a suavidade do mel que, juntas, formavam uma combinação que ela julgava perfeita.
Eu, sentado a sua frente, admirava a garrafa donde o mel fora retirado. Era uma garrafa grande, o que me fazia pensar que o mel que um dia ali estivera levara muito tempo para ser consumido. Ela confirmou que sim, quatro anos. E onde a senhora comprou? Ele me deu.
Ele... ele tinha tocado naquele vidro. Tive um impulso de colocar minhas mãos naquela garrafa para sentir um pouco do que ele foi, para estar no mesmo lugar onde ele esteve... mas me contive e continuei apenas olhando.
Ele ia extinguindo-se aos poucos... as roupas doadas, a mobília trocada, a rotina renovada, as lembranças embaralhadas... as poucas coisas que tinham sobrado começavam também a se esgotar... o mel, os frascos de perfume...
Levantei e peguei uma cerveja na geladeira, as marcas dos produtos também tinham sido trocadas...
Abri a lata e enquanto sorvia aquele líquido lembrei-me do dia que perguntei a ele se gostava daquela marca pelo gosto ou pelo preço... no começo era pelo preço, mas depois a gente se acostuma..... a gente se acostuma a tudo... concordei com a cabeça, naquele tempo ainda não tinha me deparado com a ferrugem da saudade.

Presença

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Os olhos pairam, mas não enxergam o que a visão olha.
Os ouvidos pulsam, mas não escutam o que a audição ouve.
As mãos projetam, mas não edificam o que a situação ordena.
A vida passa numa fotografia que não revela
aquilo que foge
aos olhos, ouvidos e mãos
de quem folheia um álbum de fotos
qualquer.

Poema de Aniversário

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Aspiro o silêncio sepulcral da manhã e me preencho de 
vazio.
O horizonte permanece na paz
inabalável
daquilo que existe.
Caminho por entre os mármores frios
e a morte esbarra nas flores que jorram dos vasos.
Toco na pele fria da moldura que encarcera um sorriso.
Somos dois estranhos.
Esboço algumas palavras.
Sinto os olhos úmidos.
Uma lágrima nasce, mas é ríspida demais para se entregar ao chão.
Volta ao útero de onde veio.
Invejo a humildade do orvalho que se entrega ao abismo.
Penso no passado e me orgulho do fracasso que sou.
Despeço-me com promessas e pedidos.
Sigo meu caminho a pensar quando voltarei ao pó
e a manhã repousa com a complacência de quem ambiciona apenas
entardecer.