Ser feliz em Pirangi*

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Esta semana esmoreci. Trabalho, faculdade, relacionamento, dinheiro. Tudo confuso. Tudo em crise. Adoeci. Chorei. Voltei pra Pirangi.
Revejo a avenida, o coqueiro torto, o comércio, as casas... minha mãe. Ao vê-la, minha febre passa, minha voz volta e minha cabeça para de doer. Tão pequena, tão magra. Culpo-me por tê-la deixado. Culpo-me por não a resgatar.
Depois de choros abraços que saudade como você tá eu tô bem não se preocupa por que não me avisou eu cuido de você, já estamos em volta da mesa. Qualquer conversa e decisão familiar, é sempre em volta da mesa. Pão café mussarela manteiga requeijão. O que eu tinha mesmo?
De hora em hora mais uma xícara é posta. Irmãos, sobrinhos, cunhados, vizinhos...  Quando todos se vão, restamos minha mãe e eu. Duas vidas vão sendo projetas e criticadas. Isso tá bom isso não é certo faz assim não se preocupa com isso e se...
À noite vou ao médico. Na sala de espera conheço a maioria das pessoas. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém. Já no consultório, conheço o médico também. É o pediatra. Cuidou de mim, dos meus irmãos e dos meus sobrinhos. Anos depois, ele continua cuidando de mim, dos meus irmãos, dos meus sobrinhos e até da minha mãe. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém.
Pela manhã vou fazer o exame prescrito. No caminho, conheço a moça do salão, o cara da oficina, o pessoal do posto, as mulheres do calçadão. No laboratório, conheço o dono, a secretária, o cara que colhe meu sangue e até os cachorros que ficam por ali. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém.
Amanhã irei à manicure e em poucos minutos serei atualizada de todos os últimos acontecimentos da região. Quem morreu, quem nasceu, quem casou, quem traiu, quem foi, quem voltou.
Em casa novamente, 23 anos do mesmo discurso: Vem tomar café! Vem almoçar! Calça um chinelo! Por isso que você fica doente! Não se cuida! Não come direito! Você precisa se alimentar! Te falta vitamina! Te falta juízo!
Em Pirangi é assim, seja em casa, na rua, no trabalho, tem sempre alguém olhando por você, alguém que te conhece. Você pragueja por não ter muitas opções de lazer, mas sabe que na lanchonete, na pizzaria ou na praça vai encontrar a maioria dos amigos, dos conhecidos, o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão.
Em Pirangi, o bem-querer tem sabor de café. Como você tá tô bem e o trabalho e a faculdade que Deus te ajude amém aparece lá em casa pra gente tomar um cafezinho apareço sim té mais inté. É claro que não aparece. É claro que quem faz e quem recebe o convite sabem disso. Segundo o dicionário pirangiense chamar alguém pra tomar um café é dizer: aparece lá em casa se precisar de algo, se tiver com algum problema, eu te ajudo. Mas por que, então, não falar logo de cara? É que café é bom. Problema não.
Em Pirangi, as referências não são dadas por prédios comerciais, mas por residências. É lá perto dos Pirondi, do lado dos Bossolani, lá pro lado da casa do Dr. Edson, na frente do Dr. Rogério.
Em Pirangi, o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão, conhecem minha família. Meu pai, minha mãe, meus irmãos e sobrinhos. Em Araraquara, quê importa minha genealogia? Ninguém pergunta sobre o emprego do meu irmão, ninguém sabe quem foi meu pai, ninguém vai dizer que me conhece desde pequenininha ou vai mandar lembranças aos meus irmãos ou vai exclamar como seus sobrinhos cresceram!
Eu amo Ararquara. A cidade me deu formação, emprego, conhecimento, amigos, casa, liberdade, amadurecimento. Mas Pirangi tem a lanchonete a pizzaria a praça o médico o cara do laboratório a moça do salão o cara da oficina o pessoal do posto as mulheres do calçadão, as cadeiras que conversam à noite, o pão café mussarela manteiga requeijão, o depois eu te pago, o pois sim, o pois não.
Pirangi irá resistir à modernização. No ano de 2100 quando os carros voarem e as pessoas se robotizarem, Pirangi continuará com suas charretes e cavalos pela rua, com as cadeiras em frente às casas, com o passa lá pra tomar um cafezinho.
Voltarei à Araraquara. Mas quando me cansar, venho pra Pirangi. Quando me aposentar, venho pra Pirangi. Pra ser ponto de referência, pra um cafezinho, pra falar que conheço você desde pequenininha, pra que conheçam meus filhos, meus netos, pra ser feliz em Pirangi.

*O título foi retirado da canção "Pirangi", de João Pacífico.



Poema em branco e preto

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Quando a porta abriu e a claridade entrou,
a poesia, companheira do homem,
esgueirou-se para o escuro que inda restou.

Esquecida, ela via nossas acrobacias solares,
os eclipses celestes e os tons que antecedem
o entardecer de todas as amizades.

Quando a porta fechou e anoiteceu,
a poesia, esperança do homem,
alargou-se e preencheu-se do breu.

Lembrada, esqueceu a traição de outrora,
tomou minhas mãos, murchas de desdém,
e guiou-me pela noite cá dentro e lá fora.

Outros crepúsculos virão até que reste
a poesia, compreensiva do homem,
e me leve aonde não há porta que abra ou feche.


Absolvição da Poesia

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"Meia-noite em Paris" de Woody Allen

O homem navegou sobre as águas
e não provou
o sal de suas ondulações.
O homem andou pelos campos
e não sentiu
a paz que brotava do chão.
O homem chegou à cidade
e não notou
as almas que suportavam corpos.

Um dia o homem parou
para ver a poesia
transcrita
nas páginas numeradas.

“Que letras tortas são estas que falam e não entendo?”

Ouça, homem, é a palavra que não vês?


Um bicho intelectualíssimo

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Não te enganes, não há trabalho aflitivo como o de ser poeta.

Este ato de alinhar catástrofes,
lapidar a linguagem e a vida,
edificá-las no alicerce das emoções?
Não.
Isso se tira nas letras.
Estuda, pesa, cava, guarda, testa...

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo?

Martírio, até agora, não há.
Pois bem, aqui o tens: a pena do poeta é a inconstância.

Este agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto,
que bem antes de Camões se sentia e o faz feito máscara grega.

Uma simples resposta que se demora,
de uma pergunta sem lá muita importância,
fá-lo preferir a morte ao tormento da espera.

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões?

Mas a morte não vem.
Morrer assim? No tempo e na carne?
Não.
Suicida-se parcialmente em copos e cigarros e versos.
Até que a resposta venha.
E põe-lhe o sorriso no rosto.
Até que outra pergunta seja feita.

Nunca te disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões e de covardia?

Ao encontrar um destes espécimes, indaguei:
“Se há tanto mal nisso, por que não trocar o ofício?”
Para o meu espanto, riu-se:
“Que nada! Desce mais um amor enquanto compro mais cigarros”.

É que nunca me disseram que o poeta é um bicho intelectualíssimo que se alimenta de paixões, de covardia e da ruína de si mesmo.

Mote e glosa

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Porque repousas em sonho,
enquanto vigilo no escarlate de tuas mãos
e porque renasces para o imprestável,
enquanto me presto a colorir tuas ilusões.
Porque edificas proezas, conquistas,
enquanto eu sou o eco que as reverbera
e porque a boca te diz no pretérito,
enquanto as mãos te pensam no presente.
Resguardo-me em poesia.
Imprimo-me no papel com reminiscências de ti, de mim,
e daquilo que ninguém se atreveria a chamar de nós.
Porque essa ninharia, atirada à margem, chamada 'poeta',
se contenta em receber o reflexo do amor que tu dedicas à poesia
que nasce de suas chagas.

Poemar

0

“Onde está a poesia?”, inocentemente, alguém perguntou.
“A poesia está nas palavras”, brincou O Menino.
“A poesia está nos fatos”, afirmou O Poeta.
“A poesia está no ser”, retrucou O Filósofo.
“Não. A poesia está nas coisas!”, bradou um crítico.
Eu, se tivesse voz, sussurraria:
A poesia não precisa de refúgio, meus caros.
Ela, simplesmente, está.

Poemas de um sábado descartável com Francisco Alvim

0

0. Podia Ser Pior.
Ou não.
Estudos
Desconhecidos
Apontam:
Jovens
Adultos
Com plobremas
Sociais e
Diccionais
Possuem um futuro
Singular.

1. Sente Saudade?
Eu não,
(as torneiras silenciosamente
fechadas,
os quadros racionalmente
alinhados,
as louças claramente
limpas,
os tapetes perfeitamente
estendidos)
a casa
Sente.

2. Quer Companhia?
O Vazio ocupou
E S P A Ç O.

3. Eu Posso Explicar.
Explique-se,
mas seja explicativa.

4. Quer Sair?
Nas ruas
a incerteza
te espreita
passo
a
passo.
Um homem pigarreia palavras de amor esquecidas.
Não.

5. Você Não Liga?
Ligo.
Ninguém atende.

6. Afazeres.
Perdão, a disposição funciona somente em horário comercial.

7. A Porta.
Da geladeira
Abre e
Fecha
Abre e
Fecha
Abre e
Fecha
Abre
até que eu queira o que não tem.

8. Com Que Roupa Eu Vou?
Qualquer
uma
que sirva.

9. Mercado.
Deseja mais alguma coisa, Senhora?
Um abraço, por favor.

10. O Ministério Da Saúde Adverte:
Este produto contém substâncias tóxicas que levam à falência.

11. TV.
Antes só do que mal acompanhado.

12. Chat.
E aeeeee, gata?!?!?!
Quer tcccc?!?!?!
rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs
...
...
...
Queria.

13. Fim.
A Noite e o poema
não têm.