Soneto a ser encaminhado ao departamento competente

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Man Writing - Oliver Ray

     A ideia já se foi há muito tempo.
     O que há agora são frases perplexas
     e vãs, discutindo e teorizando
     sobre a incapacidade do poeta.

     Olham-no de sujeito a predicado,
     apedrejam-no com pontos finais,
     e tudo com o direto objetivo
     de crucificá-lo cada vez mais.

     E o poeta que chegou a pensar
     numa obra de sutil significado,
     vê-se, subitamente, encurralado

     por essas insensatas em negrito.
     E então, depois de muito matutar
     compõe um soneto para reclamar.

É preciso saber viver

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Naquele tempo a vida era áspera e atribulada, mesmo assim, vez ou outra, ela punha-se a dançar inconsequentemente pelas festas ou pela casa.
Colocava o velho rádio em cima do fogão e ficava à procura de uma estação que estivesse tocando músicas do rei. Quando não encontrava, calçava seu chinelo amarelado e ia até a esquina usar o telefone público pra pedir: “toca Roberto!”.
Voltava e a cozinha transformava-se em seu salão. Os pés faziam um vai e vem confuso e o quadril ensaiava um rebolado, enquanto os braços erguidos acompanhavam o movimento da cabeça que guardava um sorriso de recordações e a paz do esquecimento nos olhos fechados.
Nas festas, depois de fazer o que dela se esperava, pegava um copo de bebida qualquer, bebia-o sem saber o porquê e ia para o centro da roda.
O mesmo vai e vem confuso dos pés, o mesmo rebolado mal acabado no quadril, os braços erguidos, o movimento da cabeça, mas um sorriso que se voltava para o presente e os olhos abertos para a realidade daquele momento.
Hoje a vida é amena e tolerável, as coisas não são boas nem ruins. Ela não ouve mais rádio, não dança mais e passa ilesa a qualquer música do rei.
Naquele tempo, viver era a única opção.

Domingo

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As últimas gotas do mel caíram sobre o pão. Ela passou o dedo na boca da garrafa tentando resgatar um pouco da doçura que ainda subsistia ali. Lambeu o dedo lambuzado e uma gota que havia caído na blusa, última lágrima de ouro. Comeu calmamente, como sentindo em cada movimento da mastigação a secura do pão e a suavidade do mel que, juntas, formavam uma combinação que ela julgava perfeita.
Eu, sentado a sua frente, admirava a garrafa donde o mel fora retirado. Era uma garrafa grande, o que me fazia pensar que o mel que um dia ali estivera levara muito tempo para ser consumido. Ela confirmou que sim, quatro anos. E onde a senhora comprou? Ele me deu.
Ele... ele tinha tocado naquele vidro. Tive um impulso de colocar minhas mãos naquela garrafa para sentir um pouco do que ele foi, para estar no mesmo lugar onde ele esteve... mas me contive e continuei apenas olhando.
Ele ia extinguindo-se aos poucos... as roupas doadas, a mobília trocada, a rotina renovada, as lembranças embaralhadas... as poucas coisas que tinham sobrado começavam também a se esgotar... o mel, os frascos de perfume...
Levantei e peguei uma cerveja na geladeira, as marcas dos produtos também tinham sido trocadas...
Abri a lata e enquanto sorvia aquele líquido lembrei-me do dia que perguntei a ele se gostava daquela marca pelo gosto ou pelo preço... no começo era pelo preço, mas depois a gente se acostuma..... a gente se acostuma a tudo... concordei com a cabeça, naquele tempo ainda não tinha me deparado com a ferrugem da saudade.

Presença

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Os olhos pairam, mas não enxergam o que a visão olha.
Os ouvidos pulsam, mas não escutam o que a audição ouve.
As mãos projetam, mas não edificam o que a situação ordena.
A vida passa numa fotografia que não revela
aquilo que foge
aos olhos, ouvidos e mãos
de quem folheia um álbum de fotos
qualquer.

Poema de Aniversário

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Aspiro o silêncio sepulcral da manhã e me preencho de 
vazio.
O horizonte permanece na paz
inabalável
daquilo que existe.
Caminho por entre os mármores frios
e a morte esbarra nas flores que jorram dos vasos.
Toco na pele fria da moldura que encarcera um sorriso.
Somos dois estranhos.
Esboço algumas palavras.
Sinto os olhos úmidos.
Uma lágrima nasce, mas é ríspida demais para se entregar ao chão.
Volta ao útero de onde veio.
Invejo a humildade do orvalho que se entrega ao abismo.
Penso no passado e me orgulho do fracasso que sou.
Despeço-me com promessas e pedidos.
Sigo meu caminho a pensar quando voltarei ao pó
e a manhã repousa com a complacência de quem ambiciona apenas
entardecer.

II

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Eu amo.
E amo com uma ferocidade e loucura tamanhas,
que só não saio por aí
rodopiando pelos ares
(feito balão que se esqueceu de amarrar a boca),
porque escrevo.
Esse lirismo comedido – virtude pós-moderna –
não me serve.
Eu sou um fraco.
Mas prefiro a fraqueza do amor à robustez da indiferença.
O arquiteto que me perdoe, mas minha construção é feita de tênue alvenaria.
Daquela que com o mais casto toque sai voando,
e pousa
em qualquer terreno,
afável ou grosseiro.
Eu amo.
E amo tudo quanto existe e é passível de amar.
E invento também.
Porque a realidade não me basta.
Crio venturas e desventuras,
verossímeis ou surreais,
não há disparate no meu mundo,
pois tudo é belo quanto a mulher que passa.
Eu amo!
E amo aquilo que fere, que é áspero, árduo, indócil,
porque amar é humano,
mas padecer por amor...
é celestial.

I

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Um dia aprendi com um moleque,
Mestre,
que ser inútil tem lá suas utilidades.
Passei assim. 
Então.
Portanto.
Me engrandecendo de inutilidades.
Porém,
(em certo quando)
ao meditar inutilmente,
me vi útil pra ser triste
(pra ter nó no peito e aperto na garganta).
Senti, então, minha cachoeira de inutilidade útil
cair-se
em mar de utilidade inútil
e utilmente entristeci.
Foi então que inutilizei minha tristeza
e fiz dela palavras.
Coloquei num poema torto,
desajeitado, útil, inútil, pouco importa, tanto faz...
Triste.