I

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Um dia aprendi com um moleque,
Mestre,
que ser inútil tem lá suas utilidades.
Passei assim. 
Então.
Portanto.
Me engrandecendo de inutilidades.
Porém,
(em certo quando)
ao meditar inutilmente,
me vi útil pra ser triste
(pra ter nó no peito e aperto na garganta).
Senti, então, minha cachoeira de inutilidade útil
cair-se
em mar de utilidade inútil
e utilmente entristeci.
Foi então que inutilizei minha tristeza
e fiz dela palavras.
Coloquei num poema torto,
desajeitado, útil, inútil, pouco importa, tanto faz...
Triste.

Oração

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   Pai nosso que estás no céu santifica este é o grande problema você tá no céu quero ver ser santo aqui na terra com tudo que é pecado só esperando a gente pecar tudo bem que seu filho foi santo terreno também mas na época dele era fácil vai ser guloso com pão e peixe ter luxúria vestindo túnica vaidade se nem espelho tem não não vai ah e hoje em dia tem as pernas também mas um diz que elas não têm pernas outro diz pra que tantas e eu já não sei mais em quem acredito seja feita a vossa vontade assim é bom um monte de gente fazendo vossa vontade e a minha quem faz o pão nosso de cada dia nos dai hoje mas aí também fica difícil por que só hoje não pode ser o pão nosso de cada dia nos dai hoje e sempre porque desse jeito que tá a gente tem que rezar todo dia e a bebida como fica a gente nasce peca cresce peca estuda peca trabalha peca se casa peca tem filhos peca morre peca e não tem o direito de tomar uma bebidinha pode até ser que você goste de vinho tem gente que gosta mas eu prefiro é cerveja mesmo  faz assim então cerveja pra mim e vinho pra você eu pago a conta pode mudar então e ficar assim o pão nosso e a bebida minha nos dai hoje e sempre mas livrai-nos do malamém.

Soneto Incerto

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Procura-se o certo, até a vã certeza 
de que é melhor o fim, mesmo que seja 
antes do facultativo começo. 
Abstrata forma, deixa tudo cheio, 
 
pé, pau, pele, placenta, pulmão, perna... 
qualquer vão vazio ou brecha, onde possa 
se infiltrar e encontrar um reservado 
lugar, o qual estaria completo 
 
com essas coisas que não satisfazem: 
angústia, ira, amor, desassossego... 
Mas mesmo que haja aqueles que dizem 
 
que de certeza estar-se preenchido 
é o que aspira o homem, vem a vertigem 
de exaurir-se e ser só ilusão e vazio.

Minha cachaça

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     Naquele dia tinha ido dormir às 4 da manhã. Não estava muito bem, então resolvi ficar acordada fazendo qualquer coisa inútil (que agora não me lembro) e pensando o que deveria mudar na minha vida. Prazer de crucificado, ficar olhando as próprias chagas e nunca deixar-se morrer.
     Pois bem, isso pouco importa. O fato relevante é que como fiquei acordada até àquela hora, desejava acordar às 11 ou depois. Mas não foi o que aconteceu. Às 8 acordei com meu irmão pulando em cima de mim e fazendo uns sons estranhos com a boca que não sei reproduzir com palavras. O que foi? Tem ensaio da orquestra hoje na igreja, vamos? ........ Vamos.
     Não gosto de igrejas, embora admire a fé por ser algo que não tenho. Mas orquestra é orquestra. Ensaio é ensaio. E isso são coisas que não se perde. Fui.
     Chegando lá a igreja estava lotada, fiquei em pé, quase do lado de fora, mas no meio da celebração já estava em um lugar mais confortável. Havia uns 270 músicos. Antes de o ensaio começar, o pastor fez suas preces. Leu o salmo, explicou, gritou, chorou e etc. Chegando ao fim de sua fala ele passou para o tema “música”. Disse coisas significantes, como por exemplo, que há músicos que ficam muito tempo sem tocar seu instrumento, simplesmente não conseguem. Deixam-no guardado, empoeirado, querem pegá-lo, mas não há ânimo. Para o pastor isso é obra do satanás, para mim, é obra de qualquer outra coisa que não sei explicar.
     De todas as outras coisas significantes que ele disse a que mais me chamou atenção foi a frase: a música tira o mal que há em você.
     É, tira sim. Óbvio que ele estava falando novamente de alguma entidade mítica causadora disso, mas a frase tem sua verdade.
     De todos os poemas que já li do Carlos Drummond de Andrade há um que nunca esquecerei e que os versos iniciais ficaram gravados em minha memória. São do poema “Explicação” do livro Alguma Poesia de 1930.
     “Meu verso é minha consolação/ Meu verso é minha cachaça/ Todo mundo tem sua cachaça”.
     Tais versos desde minha primeira leitura desse poema até hoje são a melhor explicação do que é poesia. Do que é poesia e música pra mim. “Todo mundo tem sua cachaça”, todo mundo tem algo pra se apoiar, pra se consolar, pra tirar o “mal” de si. Se não tivesse a gente já teria enlouquecido, se suicidado, gritado com a moça bonita que não te quer, matado o cara que entrega o gás e xingado Betoween por ter composto aquela música.
     Qualquer coisa serve de apoio, cada um encontra a que melhor lhe convém. Para alguns é a bebida, para outros as drogas, a vontade insaciável de consumo, o sexo, a internet, a religião, até mesmo outra pessoa e etc.
     A minha muleta, a minha cachaça, o meu oxigênio são a música e a literatura. Para aqueles que têm a alma tímida, os olhos sempre baixos e o corpo pouco interessante, qualquer coisa que se pode dizer sem falar é um grande aliado.
     Se estou triste, pego meu violão; se falhei em algo, escrevo um poema; se estou feliz, canto um samba e assim, tiro o mal de mim.
     Saí daquele ensaio feliz. Ouvi o timbre de cada instrumento, cada voz que soltava suas mágoas, cada sopro que expelia o que estava guardado, chorei, vi o amor e entusiasmo nos gestos e palavras do maestro.
     A cachaça vicia, dá prazer e se torna sua grande amiga. Não penso que apoiar-se seja algo ruim. O filósofo que me perdoe, mas não quero ser livre, viver angustiada. Quero mesmo é ser dependente, incompleta e metamorfosear-me em cachaça.

O Prazer dos Coletivos

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“A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara”. ¹

   Há um prazer acre-doce em andar de ônibus. E não é o orgulho de quem não tem outra opção, falando, não. Eu realmente vejo um prazer nisso. Dizem que são felizes aqueles que conseguem aproveitar as pequenas coisas do dia-a-dia. Bom... Feliz ou não, eu aproveito.
   Então, eu sinto um prazer nisso.
   Ao entrar em um ônibus, parece que somos tomados imediatamente por uma força que nos faz olhar pra fora. E é tão difícil olhar pra fora, não é mesmo? Nós que somos tão acostumados a olhar pra dentro que, se por ventura, olhamos pro exterior é pra mediar a relação com nosso interior.
   Parece-me que essa força não existe nos meios de transportes particulares. Privilégio dos coletivos.
   Então, eu entro no ônibus, passo meu cartão, me sento indiferentemente em um banco e... olho pra fora.
   Daí que andar de ônibus meio que parece andar pela vida sem ser percebida pelos que estão vivendo. E não é exagero, nem fruto desses impulsos literários que às vezes nos tomam. Eu realmente penso assim.
   Então, eu entro no ônibus, passo meu cartão, me sento indiferentemente em um banco, olho para fora e... vejo a vida.
   E aí?! Daí que vejo as casas, o comércio, as pessoas e inevitavelmente sempre me faço a mesma pergunta: por quê?
   Por que aquele senhor um dia pensou em abrir aquele restaurante? Ok, talvez essa resposta seja mesmo óbvia: pra ganhar dinheiro. Mas pra quê? Pra ele comprar um carro, uma casa e etc? Mas era porque ele queria comprar um carro, uma casa e etc ou porque ele tinha que comprar um carro, tinha que comprar uma casa e tinha que comprar etc?
   Por que aquela mulher está andando apressada, quase correndo, que nem viu quando alguém a cumprimentou? Por quê?
Por que aquele cara ali acordou de manha, tomou seu café, foi trabalhar e vestiu uma máscara sorridente ao entrar no trabalho? Por que ele tira a máscara sorridente quando sai da loja? Por quê?
   Por que aquele senhor do outro lado da rua anda tão indiferente às pessoas ao seu redor que nem viu quando uma velha senhora, sentada na sarjeta, lhe estendeu um pacote de amendoins pra que ele comprasse? Por quê?
   Por que aquela velha está ali? Por que eu estou aqui olhando pra ela? Ah.... é mesmo... é uma viagem pela vida.
   Não é querer dar sentido a tudo, não é isso. É só um estúpido desejo de que aquelas pessoas tenham “porquês”. É só um desejo que as pessoas saibam porque estão vivendo. Só pra seguir o curso natural da vida?
   Você nasce, daí você cresce, aí você tem que estudar, tem que arrumar um emprego, tem que ter dinheiro, tem que encontrar um amor, tem que casar, tem que ter filhos, tem que ser feliz, tem que morrer...
   Só queria que aquele cara tivesse um porque. Um porque pra levantar e ir trabalhar. Um porque pra vestir essas máscaras cotidianas.
   Um porque pra retirá-las.
   Não faça essa cara, as máscaras não são de todo ruins.
   E toda vez é assim... Toda vez eu entro no ônibus, passo meu cartão, me sento indiferentemente em um banco, olho para fora, vejo a vida e me pergunto... Por quê?
   Não importa a distância.
   Não importa se acompanhada ou só.
   E daí que passo todo o caminho me perguntando... e quando parece que vou chegar a uma resposta ou desistir de todas as perguntas... eu chego ao meu destino.
   Então, eu desço do ônibus e vou viver.

¹ BRANDÃO, Raul. Húmus. Porto: Porto Editora, 1991, p. 39.

Paisagem

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   Dia desses passei perto da casa onde morei toda minha infância. Não a reconheci. Cadê o portão enferrujado e meio torto? E aquela parte quebrada do muro, por que consertaram? E as flores que mamãe plantou naquele canteiro, onde estão?
   Cobriram o amarelo desbotado da minha infância de um rosa desbotado de bom gosto.
   O pai e a mãe venderam a casa logo depois da separação, mas não perguntaram para mim.
   Nunca encontrei outra casa que tivesse um buraco no chão do quintal do fundo, com o qual se deveria tomar cuidado para não cair dentro, pois caso isso acontecesse, quando se desse conta já estava em outro mundo (um subterrâneo, do qual até hoje tenho minhas dúvidas se existe ou não).
   Nunca encontrei outra casa que as folhas e flores que a árvore ao lado deixava cair no quintal viravam dinheiro. Nem dólar, nem euro valeriam tanto quanto aquele dinheiro que comprava mundos e até o que não estava a venda.
   Nunca encontrei outra casa na qual visse meu pai sentado na sala assistindo o jogo no domingo à tarde. Na qual eu me sentaria ao lado dele e pensaria se o juiz merecia mesmo tudo aquilo.
   Também nunca encontrei outra casa onde tivesse tanto medo e tantas brigas.
   Acho que saudade é isso, é sentir falta de momentos bons e não tão bons assim. A outra é um desejo de felicidade disfarçado.
   Ali, em frente à casa da minha infância eu não desejava nada. Apenas observava e tentava encontrar naquele móvel reformado, o esconderijo infantil.
   Ali, sozinha (apenas na companhia de algumas lágrimas) eu tentava descobrir o que ficou perdido. Talvez deixado em um canto da sala, enfiado no buraco do muro ou em cima do telhado.
   Não, eles nunca me perguntaram.
   Em certo momento pensei que se tivesse dinheiro compraria aquela casa novamente, mas essa ideia logo passou. Pra quê? É mesmo impossível atar as duas pontas da vida.
   Ali, naquele momento, lembrei do dia em que minha irmã ligou: “Corram! Antes que ele chegue”.
   Sozinhas, na rua, de mãos dadas...
   Corram, antes que ele chegue...
   Noite, sozinhas, frio....
   Corram, antes que ele chegue...
   Escuridão, pra onde? Sozinhas...
   Corram... Antes que ele chegue.

Obs: pintura "Paisagem de inverno" de Kandinsky

O voo das Borboletas

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Estudo sobre o voo das borboletas revela que,
mesmo quando voam aos ziguezagues,
elas sabem precisamente para onde vão.

       Tinha 19, 20 na cabeça e 30 no corpo. Falava pouco, embora eu nunca tenha ouvido sua voz. Vi pela primeira vez há algum tempo, foto, e mesmo assim consegui contemplar tudo. Seu cheiro, carne, teimosia, sonhos, orgulho, defeitos que ignorei e qualidades que sempre fiz questão de exaltar.
   Intrigou-me, despertou-me, exilou-me em mim mesmo. Não sabia quem era ao certo e mesmo assim achava que sabia tudo. Que poderia falar sobre toda sua vida, seus medos mais íntimos e vontades mais luxuriosas e egoístas.
   Surpreendia-me com sua determinação e intensidade. Sabia para onde estava indo, não importaria se lhe mostrassem o caminho errado. Estava ali para aquilo, sabia, fazia.
   Tinha muitos sonhos dentro de si, e mesmo tendo baixa estatura eles cabiam ali, às vezes saiam pelos olhos, pelos dedos, até pelos pés. Mas cabiam ali. Guiavam sua vida, suas escolhas, seu fim.
   Era firme e maleável ao mesmo tempo. Era forte e sensível. Era inteligente e ignorante. Certo e errado. Confuso e claro. Todos opostos estavam ali, eles se negavam e se afirmavam.
   Não adiantava lhe contrariar, tinha certeza do que pensava e ponto. Fim de assunto.
   Pessoalmente vi umas duas, três vezes. Mas não importa, nunca importou. Era tão presente que sempre podia olhar, imagem nítida, com todos os detalhes, falsa perfeição, imutável.
   Era eu diferente de mim. Era aquilo que queria ser, era aquilo que não conseguia ser. Juntos, seríamos completos. Sozinho, eu não seria.
   Mas não, eu não podia tocar, ver, dizer: “Ei! Vem, eu sei o que você quer ouvir, sei do que precisa. Ei! Sabe aquilo que você procura? Eu sou, eu posso ser”. Mas não, não podia. Tinha medo, medo da metamorfose que faria em mim. Queria a mudança, mas era fraco demais para enfrentá-la. Fraco demais para olhar nos olhos, para viver com o fato que tudo um dia termina.
   Então ficamos assim, eu a espiá-la de longe, ela a viver normalmente. Ela a ensinar, eu a aprender até o que já sabia. Ela a ditar regras, eu apenas a obedecê-las.
   Às vezes ela chegava mais perto. Cautelosa. Eu, na minha ânsia de adoração a espantava e ela fugia. Mas mesmo longe, descobriu o que há de melhor e de mais mundano em mim. Descobriu todas as palavras não ditas, todos os sonhos proibidos, tudo que não era, mas poderia ser.
   Eu a admirava. Seus erros: aceitáveis. Virtudes: superiores. Era a única em uma multidão.
   E assim, sem perceber, me transformei. Rompi meu casulo. A metamorfose da qual tinha medo chegou astuta, paciente, ligeira e de mim se apossou aos poucos.
   Ela também mudou, embora não aparente. E hoje, já não sei o que lhe resta de vida. Mas ela ainda está ali, sempre a dizer bom dia, sempre a dizer coisas que não me interessam. Ela está ali, todo dia a me lembrar que as borboletas sempre voam.

Obs: O estudo mencionado na epígrafe foi publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society.