Pivete

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"Muitos me chamam Pivete, mas poucos me deram um apoio moral
Se eu pudesse eu não seria um Problema Social" (Seu Jorge)

Pivete acordou com o sol batendo em seu rosto, guardou seu cobertor de jornal, olhou para Mulher da Vida (que ainda dormia) e foi até a rua do comércio mendigar alguma comida. Desde que o garoto chegara ali recebia a proteção daquela mulher, dormiam perto e dividiam tudo que conseguiam.
Era como uma mãe para ele a Mulher da Vida.
No passado, Pivete teve uma família, mas mesmo naquela época já pedia esmolas por aí. Morava com Faxineira, sua mãe, e Ambulante, seu padrasto, que batia no garoto quando ele voltava para casa com menos dinheiro do que o estipulado para aquele dia. Faxineira não podia fazer nada, se confrontasse o marido, também apanharia, se o mandasse embora, ela e Pivete passariam fome.
Um dia, chegou a casa Isadora, A Conselheira Tutelar, brasileira, solteira, trinta e cinco anos, em dia com as obrigações eleitorais e dona de Charlote, uma Poodle devidamente vacinada e escovada. A conselheira decretou: “Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”.
Era sábia a Lei e era competente Isadora.
A rotina de Pivete passou então a dividir-se em duas funções: de manhã, aluno, à tarde, pedinte. Como a escola não lhe proporcionava dinheiro, na verdade, atrapalhava o arrecadamento deste, depois de alguns meses o menino deixou as aulas.
Era inútil a educação.
Informada pela escola da ausência de Pivete, Isadora foi falar com a família, porém, tarde demais. O garoto, cansado dos maus-tratos do padrasto, tinha fugido de casa. Faxineira andou dias e dias atrás do filho, mas foi em vão.
Era monstruosa a Cidade.
Pivete perambulou por aí, dormiu aqui e ali, até chegar àquela rua onde já residia há três anos.
 Naquela manhã, após sair à procura de comida, voltou com algumas frutas que foram descartadas, pois não serviriam ao apetite do Consumidor. Dividiu o que havia conseguido com Mulher da Vida, pegou sua caixinha de engraxate e foi trabalhar. A caixa fora presente do Seu Zé da Marcenaria, brasileiro, viúvo, cinquenta e dois anos, comerciante há mais de trinta e em dia com as obrigações tributárias. Quando Seu Zé viu que Pivete era colega de todos os moradores de rua daquele bairro e não tinha desavença com nenhum deles, resolveu agradá-lo, assim garantia, com a proteção do garoto, que nenhum daqueles moleques lhe assaltariam ou fariam coisa do tipo.
Era um homem esperto Seu Zé da Marcenaria.
Aquele dia Pivete andou para lá e para cá até encontrar o Senhor Paulo Teixeira, brasileiro, recém-casado, vinte e sete anos, contador de formação e profissão. Às vezes, Paulo desviava um pouco de seu caminho para o trabalho e passava por aquela rua, onde sabia que iria encontrar Pivete. Parava, deixava o garoto engraxar seu sapato e lhe pagava com uns troquinhos a mais, para ajudar o menino.
Era um homem bom o Senhor Paulo Teixeira.
Enquanto engraxava o sapato de Paulo, Pivete viu ao longe Vagabundo, que já andava entre os carros parados no farol pedindo uma graninha. Um dos carros abordados por Vagabundo era o do Doutor Carlos Eduardo Peçanha Cavalcante, brasileiro, casado, pai de três filhos, quarenta e cinco anos, empresário e dono de um Porsche Carrera. “Vai trabalhar, moleque!” foi o que Vagabundo ouviu do Doutor Cavalcante. Moleque poderia argumentar que sendo negro, não tendo casa e usando aquela roupa esfarrapada e suja ninguém lhe daria uma oportunidade, mas não adiantaria, para o Empresário tudo dependia de esforço e mérito.
Era um homem trabalhador o Doutor Carlos Eduardo Peçanha Cavalcante.
Vendo esta cena, o Escritor Augusto da Silva Moreira, brasileiro, casado, sessenta e três anos e autor de sete livros, decidiu que ao chegar à sua casa escreveria uma crônica sobre “O Absurdo”, “A Desigualdade”, “Os Direitos”, “A Educação”, “A Inclusão Social”, “O Futuro” e “Etc”.
Era um homem de ação o Escritor Augusto da Silva Moreira.
Mesmo sem a ajuda do Doutor Carlos Eduardo, Vagabundo conseguiu um dinheirinho no farol e foi papear com Pivete e Marginal, que estavam sentados na Praça Professora Carmélia Azevedo. Há algumas semanas combinavam um rolé no mercadinho do bairro ao lado.  Como era um local pequeno e afastado de outros comércios, poderiam entrar e sair sem que ninguém notasse. Depois de muita conversa e observação decidiram agir naquela noite, pois aconteceria uma festa nas redondezas e, provavelmente, muitos moradores do bairro iriam.
Deixaram tudo acertado: se encontrariam em frente ao mercadinho às onze horas, antes que as pessoas começassem a voltar da festa, pulariam o muro, arrombariam a janela lateral com um pé-de-cabra, pegariam o que precisassem e sairiam, executando o plano em no máximo vinte minutos.
A noite chegou e com um pouco de atraso tudo seguia conforme o combinado. Onze e trinta e três pulavam o muro de volta, donos de duzentos e cinquenta reais (e algumas moedas que não tiveram tempo de contar), três salgadinhos Elma Chips, dois biscoitos Trakinas e um Passatempo, uma Sprite, uma Coca-Cola, uma Antártica e alguns Sonhos de Valsa.
O Policial Furtado, brasileiro, divorciado, quarenta e três anos, dezoito de farda, pai de Rebeca Furtado e dono de uma Glock Compact, caminhava por ali à paisana quando viu um dos garotos sair do mercadinho com uma sacola na mão. O Policial gritou, o garoto correu, a pistola disparou.
Era certeira a Glock Compact.
Furtado ao perceber que havia mais alguém dentro do estabelecimento ordenou: “Não se mexe, senão leva chumbo!” Não se mexeram. O reforço foi chamado e algum tempo depois outras Glocks Compacts chegavam ao local. Os bons olhos da vizinhança assistiram atentos a toda operação e aplaudiram quando o camburão policial, levando dois menores infratores, e a ambulância, carregando um corpo, saíram dali.
Vagabundo e Marginal foram encaminhados ao Trigésimo Sétimo Batalhão da Polícia Militar onde ficariam à deriva até que o Juiz Ricardo Bittencourt, brasileiro, solteiro, cinquenta e sete anos e senhor da Justiça, decidisse qual seria a melhor medida sócio-educativa a ser aplicada para satisfazer as necessidades e direitos dos garotos e promover a sua ressocialização.
É acolhedor o Estado.