___Por
que você me perguntou aquilo?
___Aquilo
o quê?
___Se
a personalidade de alguém já se mostra na infância ou se vai se construindo ao
longo dos anos.
___Ah,
sim. Porque estou escrevendo uma nova história e não sei se digo que a
personagem já apresentava suas características principais desde criança ou não.
___Entendi...
E você?
___Eu
o quê?
___Você
acha que sua personalidade de hoje tem traços daquela da infância?
Não
respondi. E, para mim, aí se encontrava a resposta. Disseram-me uma vez que eu
era uma criança que falava pouco. Não me lembro das motivações infantis, mas
atualmente só digo algo quando julgo necessário. Nem toda palavra vale a pena e
se algo já foi dito, não há porque repetir.
Lembro-me,
porém, de perguntas que gostaria de ter feito, mas faltava-me saber como. Não é
tão fácil como dizem, diz-se a sentença e coloca-se um ponto de interrogação no
fim? Isso é para aulas de gramática, a prática tem variantes emotivas. Calei,
então, a voz daquelas perguntas e desenvolvi uma outra voz, silenciosa,
individual, na qual eu poderia dizer e imaginar tudo, covardemente
escondendo-me por trás de personagens e narradores. A Literatura faz dos
fracos, fortes. E nunca fui tão valente como agora, ao dizer que ela salvou
minha vida. Literalmente.
Pensei
o que mais trazia comigo que era eco de minha infância. Certo dia uma amiga
disse-me que eu era muito compreensiva, que nem tudo podia ser justificado.
Bom, foi preciso compreender. Embora a Literatura sustentou-me, não vivíamos em
um mundo separado, só eu e ela. As perguntas continuaram ali e permaneceram por
muitos anos, apenas um ano após a morte de meu pai elas se foram.
Foi
numa noite em que sonhei com ele. No sonho eu não era covarde e disse o que
ficou guardado durante 18 anos. Ele não respondeu, apenas disse “esquece isso”
e me abraçou. Acordei com a sensação forte de seu abraço no meu corpo e sentia
uma paz tão grande que me fez esquecer.
O
que restou de angústia foi retirada com compreensão, entendendo que cada um tem
sentimentos e motivações tão únicos e íntimos que jamais poderão ir a
julgamento ou receber uma sentença de alguém que não lhe conheça por completo.
E ninguém é capaz de lhe conhecer por completo.
De
agora em diante, tudo que recordo de mim, tem a figura de minha mãe ao lado.
Toda a coragem que me falta, ela a tem, tudo que em mim é sussurro, é um brado
em sua voz, enquanto escondo-me, ela nunca teve medo de se mostrar.
Ninguém
jamais vai saber o que Dona Nadir sofreu para fazer de seus 5 filhos o que eles
são hoje e embora me cheguem notícias das necessidades que ela passou, das
humilhações que ela aguentou, ninguém, jamais, vai saber. Falarei, então, do
que sei.
Sei
que ela nunca parou. Trabalhou em tudo quanto pôde para conseguir o melhor, não
para si, mas para a casa e os filhos. Tinha apenas um vestido, mas se lhe
sobrava dinheiro, acrescentava mais uma peça ao vestuário das crianças.
Sei
que ela já teve uma loja e que esta época foi a mesma em que um de meus irmãos
estudava em outra cidade. Ficava aflita com as vendas até conseguir o dinheiro
necessário para mandar para o “menino”, quando conseguia, paz. Não importava se
lhe faltasse algo, “o dinheiro do menino é sagrado, e tá guardado”.
Sei
que um dia enquanto almoçávamos na casa de meu irmão eu disse “a mãe sempre
gostou destas partes ruins do frango, pescoço, pé, bico...” e ele respondeu
“gostou não, ela aprendeu a comer para deixar a melhor parte pra gente”.
Sei
que quando volto para casa ela está lá, esperando no portão, às vezes encolhida
de frio, às vezes com um guarda-chuva nas mãos, mas ela está lá, esperando-me
no portão.
Sei
que ela não me perguntou se sou hétero, se sou homo, mas já me perguntou,
sorrindo, se eu tinha “arrumado um namoradinho” e ao receber uma resposta
negativamente mal-humorada perguntou, ainda sorrindo, “e uma namoradinha?”. E toda
vez que homossexualidade foi assunto e eu a ouvi dizendo “são nossos filhos, a
gente tem que aceitar, se fosse o meu, eu aceitaria”, na verdade, o que ouvi
intimamente foi “filha, não me importa como ou o que você seja, eu te amo”.
Sei
que mesmo que digamos “descanse, mãe, estamos bem”, ela não descansa, e se
culpa por não ter tido oportunidades de dar ainda mais para seus filhos.
Se
eu acho que minha personalidade de hoje tem traços daquela da infância?
Bom, eu ainda falo pouco e foi mais fácil
escrever do que dizer tudo o que aqui vai. Porém, de todos os traços, o mais
forte e profundo, sempre será o de minha mãe, este amor tão grande que foi
capaz de tirar-lhe a vida e dividi-la em outras cinco, as quais tudo a ela deve
e tudo a ela agradece.